quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Um Conto de Natal

continuação

     De repente, julgou ouvir ruído no celeiro. Assoprou a vela, muito depressa, e enfiou-se debaixo do cobertor. Depois adormeceu. Enquanto dormia, pareceu-lhe que uma porta se abria devagarinho, e que uma sombra entrava na água-furtada. Arriscou um olhar fora dos cobertores, para ver o que lhe mostraria a luz do luar que inundava o quarto.
     Estaria sonhando? Percebeu que a sombra era um homem, vestido como esses emigrados que ela via passar pelas ruas da aldeia, quando os levavam presos para Saint-Malo, e ouviu uma voz meiga que dizia:
     — Não tenhas medo, minha pequenina, não tenhas medo!

     Solange não tinha medo. Sentiu afastarem-lhe com cuidado os caracóis que lhe cobriam a testa. Um raio de luar atravessava a janela sem cortinas e batia em cheio na cama. O homem que entrara contemplava-a:
     — Como estás bonita, minha Solange! E crescida, e forte!
     Não se cansava de olhar para ela. E de repente tomou-a nos braços, apertou-a desesperadamente ao peito e cobriu-a de beijos. A menina já não sabia se estava acordada ou sonhando, mas pensou de repente que, se o pai fosse vivo e estivesse ali, diria aquelas coisas, e seriam assim os seus afagos, aquele abraço, aqueles beijos... Pareceu-lhe que o homem se ajoelhava à beira da cama, julgou ouvi-lo soluçar, aninhou-se-lhe nos braços e tornou a adormecer, inundada de felicidade.
     De manhãzinha, quando abriu os olhos, custou-lhe ordenar as suas recordações. Mas depressa recuperou a consciência da realidade: não havia dúvida, tinha sido tudo um sonho. O quarto estava vazio, e a porta do celeiro fechada. No andar de baixo, ouvia como de costume o passo pesado da tia Rouault, nas suas voltas da manhã. Solange sentou-se na cama, e de repente soltou um grito de alegria. Sobre os tamanquinhos, acabava de ver, no esplendor de um vestido verde claro, uma grande boneca majestosa e sorridente, uma boneca vestida como uma "lady", com lindos caracóis sedosos a emoldurar as faces de esmalte, um xale de renda cruzado no peito e sapatinhos de marroquim com fivelas de prata reluzentes.
A criança caiu de joelhos em frente da "senhora", e batizou-a logo com o nome de Yvonne. Vestiu-se num abrir e fechar de olhos, e levando a "filha" nos braços, desceu à cozinha. A tia Rouault, ao vê-la aparecer com aquele brinquedo maravilhoso, que excedia tudo quanto a sua imaginação podia conceber, exclamou, estupefata:
     — Santo Nome de Deus! Quem te deu essa boneca, Solange?
     — Foi o Menino Jesus... — respondeu a menina, com toda a simplicidade.
     A bretã ficou de boca aberta. Embora fosse muito crente, aquele milagre, ainda assim, parecia-lhe ultrapassar os limites do poder divino. Mas a evidência era esmagadora. Ela bem sabia que ninguém teria podido comprar em Ploubalay semelhante maravilha, nem mesmo em Matignon, nem sequer em Saint-Malo ou em Rennes. O prodígio encheu-a de respeito. Examinou, sem quase se atrever a tocar-lhe, a "senhora" que Solange lhe estendeu triunfalmente. Depois chamou o marido:
     — Venha ver, Rouault! Venha ver o que o Menino Jesus trouxe para a nossa menina!
     O espanto de Rouault não foi tão grande. Era uma alma simples, e nada percebia de sedas e enfeites. Mas já as vizinhas acodiam, e falavam todas ao mesmo tempo, pondo as mãos em sinal de admiração. Algumas curvavam-se ingenuamente ante o prodígio indiscutível. Outras, mais céticas, ficavam desnorteadas, incapazes de encontrar explicação satisfatória. Solange, essa, importava-se pouco com o pasmo delas. Embalava Yvonne, abraçava-a com cuidado, mal ousando aflorar com os lábios os caracóis loiros, as faces lustrosas da sua "filha". Levou-a à janela e mostrou-lhe a estreita perspectiva da rua direita de Ploubalay. Depois, como a tia Rouault, voltando às coisas práticas, a mandasse ao outro extremo da aldeia, para comprar favas, saiu radiante, levando a boneca ao colo.
     O grande acontecimento já era sabido em metade da aldeia. As mulheres vinham às portas, para ver. Solange passava, orgulhosa e grave, compenetrada da sua importância. Quando passou em frente da igreja, onde o sargento Metzger como de costume estava sentado na sua cadeira, nem pensou em se desviar, como das outras vezes. Que perigo podia ameaçá-la num dia como aquele? A sua felicidade interior era tão perfeita, que não tinha medo de nada nem de ninguém; e quando o militar a chamou, perguntando-lhe o que tinha consigo, parou com desenvoltura e respondeu, aproximando-se dele:
     — É uma boneca.
     — Que linda boneca! Onde é que a arranjaste, menina?
     — Senhor sargento, foi o Menino Jesus que a trouxe para mim.
      O jacobino levantou-se, terrível, e afastou a cadeira com um pontapé.
     — O que é que estás dizendo? — gritou.
     — É uma boneca que o Menino Jesus me trouxe, por ser Natal.
     Metzger estava espantado com tanta audácia:
     — Imaginas que eu engulo essas?!... Mas, ante o ar de candura da menina, calou-se, tirou-lhe a boneca e examinou-a minuciosamente.
     — Uma bela dama, sim, senhora! Uma verdadeira "lady"! E já viste o que está escrito aqui na sola dos sapatos? "Berkint - London". Então é inglês o teu Menino Jesus?
     — Não sei, senhor sargento — respondeu Solange, pegando outra vez na boneca, mas sentindo estragada toda a alegria.
     — Já vamos ver isso — trovejou o sargento.
     E voltando-se para o posto, chamou:
     — La Cocarde!
     Apareceu um cabo.
     — Ontem entrou alguém na aldeia?
     — Não me parece, meu sargento. Os homens estiveram sempre alerta. É verdade que ao anoitecer os cães ladraram de maneira esquisita, mas nós batemos as moitas e não encontramos nada.
     — Está bem. Chama os teus homens.
     Pôs a patrona ao ombro, afivelou o cinturão, pegou a espingarda e, à frente da brigada, dirigiu-se para a casa dos Rouault. Solange, instintivamente angustiada, caminhava ao lado dele, estugando o passo para o acompanhar, apertando ao coração a linda Yvonne.
     Ao chegarem à casa dos Rouault, o sargento dispôs os seus homens: dois de sentinela em frente da porta e outros no pomar atrás da casa, que ficou cercada por todos os lados. Depois, seguido pelos restantes soldados, entrou no jardim da casa levando Solange pela mão. Sentou-se num banco, pôs a pequena entre os joelhos e disse, num tom mais humano, certamente para a conquistar:
     — Vamos, menina. Conta-me tudo.
     Com o coração apertado, um pouco ofegante, Solange começou em voz muito baixa a sua longa narrativa. Contou o "sonho", o homem que julgara ver entrar no quarto, a ilusão de ter sido abraçada e beijada e, de manhã, a surpresa ao dar com a linda boneca. O sargento não perdia palavra. De repente, voltando-se para os soldados que assistiam de pé ao interrogatório, ordenou:
     — Vamos, meia-volta! Ponham-se lá fora de sentinela. Façam fogo sobre o primeiro que tentar fugir daqui.
     Os homens saíram, e ele ficou só com a menina.
     — Com que então, pequena, dizes que o tal homem te beijou, que te chamava "minha pequenina"?... Que se pôs de joelhos ao pé da tua cama e chorou?...
     A criança, a cada pergunta, respondia que sim, com a cabeça, sem querer mentir, mas pressentindo alguma desgraça que a ameaçava. Metzger não se deu pressa em agir. Pousou as rudes mãos nos ombros de Solange e, como se falasse consigo mesmo, disse gravemente:
     — É claro... Também eu tenho uma filha assim, lá para os lados de Gerlsheim, na Alsácia... Também tem oito anos... E também há dois anos bem contados que não a vejo. Para a ver, mesmo estando ela dormindo, às escuras, para a beijar uma vez que fosse, para a sentir respirar no meu ombro, com os cabelinhos loiros tocando-me a cara... Sim, para isso também eu arriscaria a vida sem pensar. Os pais são todos do mesmo jeito, pelo visto...
     Ficou uns instantes embebido em profunda reflexão. Depois, decidindo-se bruscamente, levantou-se, sacudiu a cabeça, e voltando-se para a porta que ficara aberta, gritou:
     — Venham cá, dois de vocês! Vamos passar uma busca na barraca.
     Solange soltou um grito:
     — Senhor Sargento, espere!...
     Ao ouvi-lo falar, a menina compreendera tudo: era o pai que, na calada da noite, afrontando a morte para estar um instante com ela, deixara o exílio, atravessara o mar, desembarcara nos rochedos, rastejara sob a ameaça das espingardas até à aldeia... Era o pai que, pensando no Natal sem brinquedos, que ia passar a sua menina, lhe trouxera a "senhora". Era o pai que estava lá em cima, escondido no celeiro, e que os soldados iam prender e levar acorrentado, entre quatro canos de espingarda...
     Então a pobre pequena, com o coração trespassado, agarrou-se ao sargento e, sacudida dos pés à cabeça por grandes soluços, suplicou:
     — Espere, espere!
     — Que mais temos? — perguntou o alsaciano, retomando a expressão brutal e a voz áspera.
     Solange tivera uma inspiração. Para salvar o pai, daria tudo o que tivesse. Mas só tinha a boneca, e lembrou-se de fazer um grande sacrifício.
     — O senhor sargento tem uma filha, não tem? Da minha idade... E que não o vê há dois anos...
     Metzger respondeu afirmativamente, com a cabeça.
     — Então... talvez... como o senhor não está em casa, o Menino Jesus se tenha esquecido dela... Olhe, tome a minha boneca, e mande-a para lá... Eu a dou à sua filha...
     O soldado curvou-se de repente para a menina e fitou-a, com os grandes olhos lacrimejantes. Respirava com ruído, os lábios tremiam sob o bigode, e o movimento dos músculos nas faces denunciava a comoção reprimida. Os dois homens que ele chamara se aproximaram.
     — Cala-te, menina, e não tenhas medo — disse em voz baixa o sargento.
     Depois, dirigindo-se aos soldados:
     — Vamos subir lá no celeiro e revistar tudo. Armas engatilhadas e olho alerta! Tu, pequena, vais adiante.
     Os três militares e a menina subiram a escada. Chegados à água-furtada, o sargento postou um dos seus homens à entrada do quarto e o outro perto da janela. Depois dirigiu-se para o celeiro e entrou sozinho, fechando a porta atrás de si. O coração de Solange batia como doido. Passados instantes, a porta do celeiro tornou a abrir-se, e Metzger apareceu.
     — Está vazio — disse. — Vamos para baixo. O pássaro bateu asas. Fomos enganados.
     Quando se achou sozinho com Solange, na sala do andar térreo, curvou-se para ela e disse-lhe ao ouvido:
     — Fixa bem o que te vou dizer: o "homem" pode ficar lá em cima esta noite e o dia de amanhã. Dize-lhe que esteja descansado, que ninguém o incomodará. Que saia na outra noite e vá daqui a Lancieux, e depois a Saint-Briac, onde pode embarcar. Essa região não estará vigiada: eu me encarrego de levar os meus homens para outro lado. Entendeste tudo?
     — Sim, senhor sargento.
     — Bom, agora a boneca. Fico com ela, e vou mandá-la para Odília, a minha filha. Fico com ela, porque mais alguém poderia estranhar, como eu estranhei, que o Menino Jesus andasse trazendo brinquedos da Inglaterra às meninas como tu. Esta "filha" ainda te daria algum desgosto. Agora, bico calado! E não te esqueças: por Lancieux e Saint-Briac.
     E saiu, reunindo os seus homens, que levou nessa mesma noite, com os cães policiais, numa expedição de três dias para o lado de Matignon.
     — E aqui têm, meus meninos, a nossa história: de Yvonne, de Odília e minha — concluiu a marquesa de Flavigny. — O único drama da nossa existência. Quinze anos depois, quando me casei, fui com o marquês em passeio à Alsácia. Dirigi-me a Gerlsheim, e perguntei pelo sargento Metzger e pela sua filha Odília. Estes nomes me ficaram bem gravados na memória. Encontrei o velho soldado, na sua plantação de lúpulo. Passara à reserva, depois de ter sido condecorado em Austerlitz pelas mãos do Imperador. Muitas vezes contara a história da pequena Solange à filha, que tinha conservado preciosamente a "senhora". Quando o sargento morreu, anos mais tarde, fui buscar Odília para a minha companhia. Ela me trouxe a Yvonne, e desde então nunca mais nós três nos separamos.



(G. Lenôtre, "Lendas de Natal" - Verbo, Lisboa, 1966)

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